Aos vinte e um anos a gente é jovem e o mundo é cheio de possibilidades. O meu era, entretanto, cheio de melancolia. Uma melancolia linda, como são as tardes frias e ensolaradas. como são, também, as dedicatórias de livro.
Minha vida era uma eterna dedicatória de livro: aquela coisa cheia de amor, carinho, possibilidade, esperança e melancolia.
Amor, sim, e carinho, pois não conheço quem escreva dedicatória com o intuito de magoar a quem se escreve.
Possibilidade e esperança, sim, pois cada dedicatória, escrita antes de iniciada a leitura, pretende que o destinatário goste daquele livro tanto quanto nós gostamos.
Melancolia, sim, porque, como tudo que é perene, a dedicatória destina-se a tornar-se passado depois de lido o livro.
E a Vida era dedicatória porque assim transcorriam os dias, cheios de amor, saudade, possibilidade e passado.
Estudava literatura portuguesa e Manoel, meu professor, mandava-nos ler Eduardo Lourenço e sua Mitologia da Saudade. Aquelas aulas eram cheias de sol, com a fala mansa de quem vem do Ceará. lembro de quase dormir embalada pelas palavras do Manoel, e tudo me parecia doce. Camões e sua lírica, de uma doçura banhada de decadência. Inês de Castro, n'Os Lusíadas... talvez eu sonhasse um amor que me coroasse mesmo depois de morta. Eu achava tudo muito lindo e poético.
Meu namorado, à época, insistia em me chamar "menina", embora fosse pouco mais velho que eu, mais jovem do que sou hoje. meu doce jurava me amar, e eu, ainda que descrente, acreditava. Eu fui um furacão de vida que arrebatou-lhe os sentidos, hoje sei, e talvez já soubesse então. Pedro dizia que eu era jovem demais para o peso da alma dele, mas eu sempre achava - talvez na inocência que os vinte e um anos nos permitem ter - que eu suportaria qualquer peso do mundo. E a vida provou que não, pouco depois.
No dia dos namorados daquele ano, eu lhe dei um all star preto, de cano baixo. Ele me deu um livro do Calvino. Talvez isso já mostrasse o quanto nossas almas tinham pesos distintos, mas nenhum dos dois quis ver. A dedicatória deste livro é pura melancolia, e é esse o sentimento que escorre pelas cento e tantas páginas escritas.
Eu confesso que achei o livro um tanto chato. até que achei uma parte que falava de mim. Não lembro qual era a parte, confesso. talvez já nem fale de mim, hoje. mas na época, foi o que me deu força para terminar o livro, e passei a amá-lo com uma ternura morna e boa.
Hoje fui jogada lá em 2006, pra dentro deste livro. E fui jogada de forma vil, até. Arremessada inadvertidamente para dentro de um mundo de saudade e melancolia, por conta do que disse um grande afeto que me feriu e a quem feri. Por que feri? Talvez por amor demais, talvez por preocupação demais e, com certeza, pelo maior sentimento de impotência que um amigo por sentir em relação ao outro. Anita, as suas cidades eu bem conheço; a da vida real, a nossa, e aquela, do Calvino. Mas deixe: seu segredo está seguro comigo.