Lembro-me da primeira vez que ouvi "Mais vinho pra mim"; era uma tarde ensolarada de abril, reuníamos nós, os amigos, em casa de Jean e Aninha, para celebrar a última reunião daquele grupo, pelo menos pelos próximos meses. Muita coisa mudou de lá pra cá.
Naquela tarde Jean apresentou-nos a canção, rindo, e dizia que ela era, de alguma forma, um discurso que eu haveria de escutar. Lembro que tive a sensação de que aquela canção era a versão masculina de "Olhos nos olhos", uma canção que procura magoar e esconder a falta que o par lhe faz. Achei a canção lindíssima, talvez uma das mais bonitas já composta pelo Jean. Uma maldade elegante. Uma mágoa dolorida, pungente. Pensei comigo que não desejava nunca que a previsão zombeteira do Jean se tornasse realidade.
Passaram-se os meses. Muitos deles. Os jantares daquele grupo não mais aconteceram, e eu ouvi, dito de outra forma, aquilo que a canção dizia. Merecidamente, convém dizer. Mas isso não vem ao caso, não agora.
David estava lá, naquele dia, mas não tenho certeza de que a canção também era nova para ele. O que posso dizer, com segurança, é que a canção o tocou profundamente.
David, vale lembrar, é uma figura encantadora. De uma coragem surpreendente, isso logo se nota, e depois se comprova. Mal conheceu Isaac Varzim (aquele, do Superpose) e passou a noite inteira tirando sarro dele, simplesmente porque o cara é gaúcho (arrisco dizer que é pelotense, se bem me lembro das piadas feitas por Don Mattos).
Mas enfim, dizia eu que a canção tocou o David. Tocou tanto que ela cresceu, cresceu e virou romance. Obra inédita, que acabo de terminar de ler. Acabo, agorinha mesmo, de ler as últimas linhas, iniciadas seis horas atrás. O texto não é longo (86 páginas) mas confesso que levei mais tempo por conta da leitura ter sido realizada no computador, o que me obrigou a várias pausas para descansar a vista. Teria levado menos tempo, a julgar minha empolgação.
David narra uma linda história de amor. E de desamor. Um amor maduro, de um homem viúvo que, aos setenta e quatro anos, redescobre a vida. O personagem principal não tem nome, ele é sempre tratado por "meu bem", "meu caro", "meu querido" por sua musa, essa sim nomeada, Ivone. A trama é envolvente, de uma delicadeza ímpar, esmiuçada com inteligência e beleza e, nesse último ponto, difere violentamente dos outros textos do David que li, tanto em seu blog quanto na antiga coluna que assinava no site Tô Puto. Os outros textos, em sua grande maioria, eram muitíssimo bem estruturados, mas versavam sobre humor, retratavam situações corriqueiras, infames, divertidamente incorretas até.
Mais vinho pra mim, não. É um texto poético, apaixonante. Tem sim seus momentos de humor - como a passagem em que o autor toma conta do texto, inconformado com o rebaixamento do seu querido Figueirense, "time mais tradicional e de maior torcida da cidade", ao mesmo tempo em que o Avaí, rival "de menor expressão, praticamente desconhecido além das fronteiras do estado" subia à elite do futebol brasileiro, e David deixa escapar um "Que merda", para logo em seguida retomar o fio da meada, quase nos fazendo crer que aquele "que merda" não era o seu desabafo de torcedor, mas a irritação do protagonista, com outra coisa qualquer.
Em outros momentos, o texto me levou às lágrimas. Sou chorona confessa, todo mundo sabe disso, mas não foram muitos os textos que conseguiram me emocionar assim. O desespero de Ivone diante da reação de surpresa de seu "querido", mostrando o quanto estavam completamente alheios às necessidades um do outro, em páginas distintas do que supunham ser a mesma história de amor (e que, a meu ver, lhes é drasticamente revelado o contrário nessa passagem) foi tão pungente que não contive o choro. E desse desespero nasceu o ressentimento, e do ressentimento fez-se a mágoa, e da mágoa fez-se o rancor (qualquer semelhança com o Soneto da separação, do Vinícius, não é mera coincidência). O mesmo velho rabugento do início do texto, lindamente transformado em um jovem apaixonado e inocente no decorrer da trama, transforma-se novamente em um homem seco, oco, ainda mais cruel do que o início poderia prever.
Em resumo, poderia ficar horas aqui falando sobre aspectos técnicos do texto, do brilhante uso do discurso direto livre, das excelentes intervenções do narrador, etc etc (afinal, a pessoa se forma em letras pra alguma coisa, não é?) mas acho que realmente não vem ao caso. O texto é bom sim, e é bom porque fala na alma da gente.
Torço para que ele consiga/decida/encontre meios para publicar o romance. O cara conseguiu me fazer ler duas páginas de uma receita de massa com camarão no meio do texto, explicada nos mínimos detalhes (pra quem não sabe, eu não engulo nada que venha do mar, por nenhum motivo outro que não seja o fato de eu detestar o cheiro, gosto, textura desses animaizinhos), com o interesse dos apaixonados. O mínimo que posso dizer depois disso, com perdão das palavras, é que ele é foda.
Parabéns Jean pela linda canção, e pela inspiração. Parabéns David, por conseguir enxergar nesses versos uma história complexa e cruel, e mais ainda por haver transformado-os num romance único, inteiro em sua existência. E obrigada pelo privilégio.
Um comentário:
dona lara,
pois não é que a senhora me deixou emocionado com seu post... também li o texto do david e até queria ter falado dele lá no meu blog, mas preferi aguardar. a verdade é que o textinho sobre o blog dele que disponibilizei no meu espaço em minúsculas era para ser pequenino mesmo.
mas confesso que fiquei a) com vergonha de não ter visto antes o seu blog e que a senhora tinha colocado o vídeo do conto do saramago aqui, b) com inveja porque a senhora falou primeiro do texto do david (eu estou, estava, de certo modo, esperando para fazer alarde dele mais pra frente...) e c) curioso para ler mais do que se desenrola por aqui...
beijo me liga.
(saudade de ti, neguinha)
mafra.
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