segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Do desamor

(Segundo Favia C.)

Ia escrever aqui, mas ela escreveu tão bonito, que disse tudo que eu queria dizer. Copio, então, na íntegra, o texto dela, disponível aqui.

Do desamor

Vinte e nove anos eu tenho, e há vinte e nove anos que me falam exaustivamente de amor. Amor, amor, amor - sempre ele. Amor de pai e mãe, de avô e avó, de primo, coleguinha, namorado, amigo. Amor de todo jeito, até dos (e pelos) bichinhos de estimação. A palavra amor parece ser a que deve reger a roda da vida, o sucesso profissional e pessoal, os humores, o morar, dormir, acordar, parir e viver. É uma overdose de amor, um coma alcoólico de amor.

Irônico nisso é que, bem sabemos (e desculpe se queimarei os castelos de algum desavisado), o amor tal como o conhecemos é mais uma bela invenção humana, construída, aperfeiçoada e adornada ao longo de séculos e séculos, principalmente no sentido estrito do amor romântico - esse sem-vergonha. Vivemos um sentimento que, a bem da verdade, ninguém sabe muito bem o que é. Afeto, carinho, paixão, compaixão... Tudo isso, ao fim e ao cabo, não é amor, em diferentes gradações e espécies? E não é essa diversidade de formas de apresentação que traz o “não-sei-quê que faz a confusão”?

Não que o amor seja uma criação perversa ou algo ruim: imagine! Se não fosse esse sentimento tão nobre e humano, teríamos feito muito pouco neste planetinha que nos foi legado. Agora, se há um sentimento outro, sobre o qual nunca ouço falar, embora o veja espalhado pelo mundo, é o desamor.

Ah, o desamor: palavra que traz uma carga imensa de lágrimas e ranho. Quando ela me vem à cabeça, a imagem que faço é daquela bolerosa mulher dos anos 50, vestida em tafetá de seda azul-rei, sozinha, sentada à bancada de um bar na elegantíssima Copacabana de antanho. Enquanto Dolores Duran canta lá no palco um samba-canção cheio desamor, aquela mulher, amargando uma tremenda dor de cotovelo, acende o vigésimo Gaulloises e pede ao barman mais uma dose de whisky - cowboy. Dolores, doce e cruel, entoa:

Toda amargura
Que há no céu
Que há na terra e no mar
Nasceu talvez da tristeza que tens no olhar
No céu há um sol a brilhar
Que beija a terra e o mar
Só tu continuas assim
Dia e noite, a chorar


Mas e o dia seguinte daquela noite etílica e fumarenta?

Primeira hipótese.

Ele não vai voltar; a despeito das crianças, do apartamento na Bolívar e das festas na pérgula do Copa, o desquite é inevitável. Ele foi seu primeiro namorado, o homem a quem seu pai a entregou, com pompa e circunstância, no altar do Mosteiro de São Bento. Ele era seu único e verdadeiro amor, e agora ela o via escapar por entre os dedos e cair nas mãos duma corista do Night and Day. Pois é: além de ganhar a medonha pecha de desquitada, ainda teria de suportar perder seu homem, de fato e direito, pra uma Certinha do Lalau. Como viver com isso?

Por uma ironia cruel
Alguém começou a cantar
O samba canção de Noel
Que viu nosso amor começar
Só falta agora
A porta se abrir
E ele ao lado de outra chegar
E por mim passar
Sem me olhar


E já era manhã quando, levando os scarpins na mão, deixou seus pés tocarem na areia úmida do Posto 4. Debruçado num janelão que se abria pro atlântico sul, o poeta (havia muitos, de verdade, naquele tempo) via aquela mulher que, lenta e firmemente, entrava no mar, submergindo sem susto, como se encharcar os pulmões de água até fenecer fosse a única coisa sábia a fazer.

Segunda hipótese.

Ele não vai mesmo voltar, e essa certeza dói demais. Ela ama aquele homem de tal forma, e há tanto tempo, que nem sequer se lembra de como era viver sem amá-lo. E será que é possível desamar? Há de ser: é isso ou a morte. Morrer duas vezes é pensar nos meninos criados por uma madrasta vedete de teatro de revista. Morrer três vezes é saber que mal completou 30 anos, que tem bons pulmões (apesar do cigarro), que é linda e cobiçada e que dará cabo da própria vida se não aprender o que é desamor.

Vamos sair por aí
Sem pensar no que foi
Que sonhei
Que chorei, que sofri
Pois a nossa manhã
Já me fez esquecer
Me dê a mão
Vamos sair pra ver o sol


Dobrando a esquina da Duvivier com a praia, ela viu a bruma morna sobre o mar amanhecido. Faria um dia quente, pensou. Caminhando pelo rasinho, molhando a barra do vestido, sorrindo e passando os dedos pelos loiros e anelados cabelos, chegou até seu apartamento. Hoje, levaria os filhos pra um mergulho. Depois, passaria na modista. Durante o almoço, planejaria o divórcio em Montevideo. E, antes de voltar pro jantar, compraria o disco daquele baiano moderno de que andavam falando. Já não fazia sentido algum ouvir samba-canção, se queria mesmo era viver em compasso de bossa nova.

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